OS CÃES DE RAFEIRA - Os cães amigos dos ciclistas

Andar de bicicleta é uma actividade saudável. Principalmente aos fins-de-semana encontram-se por toda a parte grupos de ciclistas, seja nas cidades ou no campo, percorrendo serras ou atravessando aldeias…

É um desporto que obriga a enfrentar alguns riscos, entre os quais se contam os cães, que saltam dos quintais ou correm atrás das bicicletas e que podem provocar quedas com consequências graves. Infelizmente, muitos donos parece que não têm consciência dos problemas que os seus cães podem causar e deixam andar os animais soltos e sem qualquer controlo, ou mantêm-nos em quintais que são separados da estrada por pequenos muros que eles saltam com facilidade.

São donos inconscientes mas, valha-nos isso, os cães com a sua inteligência, conseguem superar os donos. Foi o que aconteceu com os cães de Rafeira, uma pequena aldeia perdida algures num pequeno vale…



Era uma manhã de nevoeiro. Estava tão pesado e denso que, do telhado de zinco da casota, escorriam gotas de água que caíam no chão de terra do pátio com enorme estrondo, no meio do silêncio profundo da madrugada. Mais parecia que estava a chover, daquela chuva miudinha que os humanos costumam chamar de molha-tolos.

Rex, ainda mal desperto depois de uma noite de sono descansado, bocejou abrindo a sua enorme bocarra negra onde se perfilaram, sob o crepúsculo daquela madrugada cinzenta, duas fileiras de dentes de uma brancura resplandecente. A sua língua desmesuradamente comprida e vermelha pendeu, por momentos, sobre a maxila inferior.

- Ainda é cedo – pensou – a esta hora ainda não há humanos montados em máquinas esquisitas na estrada… – vou passar mais um pouco pelas brasas.

Rex não gostava de bicicletas; não sabia explicar a sua aversão por aquele tipo de veículos, mas os seus amigos da aldeia também não gostavam e nenhum sabia porquê.

Mas Rex, por acaso, até gostava de rodas, mas daquelas dos automóveis que se encontravam estacionados no largo da aldeia; não corria atrás dos carros, mas não perdia uma oportunidade de manifestar o seu afecto por eles, alçando a perna e borrifando aquele circulo que parecia uma panela fusca e com tampa, que tanto o atraía. E não compreendia o motivo dos humanos não gostarem daquele seu gesto tão nobre. Alguns até iam buscar água para lançar sobre a roda alvo da sua predilecção. - Que ingratos – pensou o Rex, enquanto fechava os olhos e se deixava embalar pelo som das pingas de orvalho que se iam soltando do telhado da casota.

Rex
Acordou com um raio de sol tremeluzente que conseguira romper o nevoeiro e espreitava por entre os ramos nus da figueira do quintal. Envergonhado por se ter deixado dormir até tão tarde saltou para fora da casota, ainda titubeante depois daquela prolongada soneca.

Cá fora o ar frio daquela manhã de inverno acabou por despertá-lo da sua letargia pouco comum e então, com a sua voz canina, chamou o dono, que não apareceu.

- Vida de cão – lamentou-se – um gajo para aqui toda a noite a guardar a casa e ninguém aparece para nos dar os bons dias!

Acabou por vir para a rua. Àquela hora os seus amigos já por ali andavam deleitando-se com o sol que começava, aos poucos, a fazer desaparecer o nevoeiro.

Rex era um bonito cão. Não tinha raça definida, mas era corpulento e tinha o pelo sedoso e brilhante de cor negro afogueado, branco no peito. Era respeitado pela comunidade canina da aldeia e, de forma carismática, considerado o chefe que todos admiravam e obedeciam.

O que mais gostava de fazer quando não lhe apetecia andar atrás das fêmeas com cio era ladrar e correr atrás dos ciclistas que passavam na estrada da aldeia. Mas não lhes queria fazer mal, era apenas para os assustar e afugentar. Aquelas máquinas esquisitas faziam-lhe confusão e, embora se interrogasse sobre quem eram aqueles humanos ou o que vinham ali fazer, nunca conseguia chegar a uma conclusão. Será que vinham para assaltar a aldeia? … Talvez para roubar o seu dono, pensava com apreensão.

Naquele instante um membro da matilha deu o alarme: ao longe, na estrada até então deserta, começavam a desenhar-se uns pontos minúsculos que se moviam e aumentavam lentamente de tamanho. As orelhas do Rex perfilaram-se e o seu olhar penetrante fixou-se naqueles pequenos vultos que se estavam a aproximar da aldeia.

Começou a ladrar para reunir a matilha e preparar o ataque aos humanos que se aproximavam naquelas máquinas esquisitas.

- Tejo! Ringo! Tim! - Prontos para o ataque!?

- Béu! Béu! Béu! - responderam os três cães em uníssono.

- Calma aí! – latiu Rafa, um velho cão que já não tinha forças para lutar, mas que ainda dava conselhos e era escutado pelos seus amigos – se algum humano cair das máquinas esquisitas e se aleijar podemos ficar em maus lençóis!

- É verdade – apoiou Ramelas, um vira-latas que chegara recentemente à aldeia – eu não quero ir para um canil!

- Mas que é isto? - rosnou Diablo, um cão que tinha um ar feroz e fama de mau – estão a ficar com medo ou quê?!

O Rafa tem razão! - acudiu Pipa, uma linda cadela de pêlo afogueado que tinha uma paixão solapada pelo Rex e que temia pela sua segurança – podemos ser castigados ou até presos!...

Naquele momento, vindo do meio da matilha, ouviu-se um ladrar trémulo, cansado, mas ainda profundo e nobre. Era Homero, o cão mais idoso daquela comunidade canina, que se preparava para falar:

- Companheiros de muitas lutas… – começou Homero…

Fez-se silêncio na matilha. Homero tinha sido durante muitos anos o chefe canino incontestado de Rafeira; um cão valente sempre pronto a lutar em defesa do seu dono e dos restantes humanos da aldeia, mas estava muito velho, já quase não tinha dentes nem pêlo e por isso é que, agora, o chefe era Rex. Mas todos ainda o respeitavam e seguiam os seus conselhos.

- Estes humanos – continuou Homero – montados nas máquinas esquisitas não são ladrões nem vêm fazer mal aos nossos donos. Desde os meus tempos de cachorro que aqui passam e nunca nos deram pontapés, nem atiraram pedras. Não há razão para os assustar e muito menos para lhes morder.

Perante aquelas palavras Rex hesitou. O seu lado guerreiro dizia-lhe para incentivar a matilha a perseguir os humanos montados nas máquinas esquisitas. Mas, por outro lado, as sábias palavras de Homero, do grande e valente Homero, que sempre tomara decisões importantes, quase sempre acertadas, fizeram-no vacilar:

- Tenho que seguir os conselhos de Homero – murmurou – ele tem razão! Estes humanos nunca nos fizeram mal algum!

- Amigos! - ladrou para a matilha - não vamos atacar, vamos apenas ficar vigilantes! Vamos acompanhá-los até à saída da aldeia – nada de ladrar nem de morder!

-Não concordo, retorquiu Diablo – apetece-me morder os tornozelos a um… mas acato a decisão do chefe! – apressou-se a acrescentar quando viu o olhar feroz do Rex, apontado na sua direcção.

Ao longe, a coluna de ciclistas continuava a sua marcha em direcção à aldeia, pela estrada estreita e rodeada por terrenos pedregosos, ponteados com pequenas oliveiras mirradas.

À entrada do lugar uma placa informativa dava as boas vindas aos forasteiros. No entanto estes ciclistas já por ali tinham passado e sabiam que os dizeres da placa eram enganadores. Sabiam que iam ter de percorrer a aldeia a grande velocidade para fugir aos seus zelosos guardadores ou, talvez, parar para os acalmar.

Mas naquele dia Rafeira estava diferente. Não se ouvia o ladrar dos cães, nem estes vieram ao seu encontro, como era costume, arreganhando os dentes afiados.

No largo da aldeia esperava-os uma surpresa. Os cães estavam ali todos reunidos e, quando passaram por eles, estes ladraram amigavelmente, saudando o grupo. De seguida, abanando a cauda alegremente, acompanharam, em leve corrida, o pelotão até à saída da aldeia…


Rex regressou a casa, calmo e satisfeito. Não se ia esquecer tão depressa das palavras que Homero lhe segredara ao ouvido:

- Bravo Rex! Os grandes cães não se vêm apenas pelos seus actos de bravura, mas também pelas decisões justas que tomam!

Mas o que mais o impressionara foram os olhares embevecidos e brilhantes de orgulho que a sua apaixonada Pipa lhe dirigira. Naquele dia sentia-se livre e um verdadeiro herói!

A manhã, entretanto, já dera lugar a uma tarde soalheira e Rex dirigiu-se para a casota… estava na hora da sua merecida sesta!

Leia também: Os cães de Rafeira II - A doença de Rex

1 comentário:

  1. Ah que bonitinho isso ... adorei Amigo!
    Bons cães esses da Rafeira! =D

    Tenha uma boa semana meu amigo, beijinho!

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